domingo, 23 de novembro de 2008

A linha de produção

Adão dorme profundamente e já ronca porque não pode ficar de lado ou de bruços, principalmente porque está pelado até os dentes. O oleiro está a seu lado, tem todo o respeito por sua criatura, e afunda-lhe uma adaga de cristal puro de rocha no peito. Indolor, a primeira cirurgia da história resulta na doação involuntária de uma costela das vinte e seis que o mancebo possuía, não me perguntem porquê; a outra talvez tenha sido usada para fazer uma amante, mas sem possibilidades de confirmação. Do seu peito a costela inteira é cravada no barro meio mole e a imensa ferida é suturada. Foi fincar no chão e começaram a crescer raízes e galhos, logo as folhas, as flores, e dois minutos após já dava várias espécies de frutas, por causa das células das variedades comidas por Adão. Dali, a jabuticaba, o coco, a melancia, maracujá, berinjela, chuchu, cereja, pêra teriam aproveitamento na feitura de Eva.
Após usar-se iodo (e como ardeu!) a ferida foi tapada com vários band-aids. Da árvore raízes foram transformadas em duas pernas. O oleiro, travestido de marceneiro, olhou para Adão e começou a copiá-lo; pensou no que colocar no meio das pernas. Olhou de novo. Fez os joelhos, que seriam a parte mais feia da criação. A madeira se fez carne e osso e foi sendo esticada feito massinha preparando-se o tronco e os braços onde colocou um joelho pequeno, só que ao contrário e sem rótula (futuro local da dor de cotovelo).
Do caule da árvore escorriam algumas gotas de sangue de onde retirava células-tronco indiferenciadas e ia dizendo fiat figadus, fiat sthomacus e completou todos os órgãos do interior da barriga e tórax. Chegou ao pescoço, e viu que lá para baixo faltava alguma coisa. O órgão sexual era igual ao de Adão. Viu que a espécie humana iria entrar em extinção muito rápido a não ser que lhes desse vida eterna. Um lindo arco íris desenhou-se no céu. Olhou muito zangado para ele e disse que voltasse outro dia porque não estava chovendo. O que se sabe é que removeu a musculatura do pênis, inverteu a pele que virou mucosa de imediato prendendo-a no alto perto da bexiga. Puxou daqui, puxou dali ajeitou e fez o prometido rachadim que no futuro iria receber trocentos apelidos, o que fazer? Achou linda e perfeita. Ele estava cercado por orquídeas, várias Laelias, sem perceber se deixara influenciar. Faltou bater com um martelinho e dizer parla.
Assustou-se com as bolinhas solitárias, tristinhas; não se deu por achado e puxou-as para dentro. Ao pensar na futura reprodução mirou uma berinjela no galho da árvore da vida e foi por ai, colocou lá, seria a madre do corpo. A semente de Adão seria plantada na madre como nos outros animais; usou um espermatozóide de Adão que sonhava e sonhava e se mexia tanto que escapavam alguns. Tirou a cauda do bichinho, disse-lhe que daí em diante ele seria feminino, recebeu em troca uma cara feia, o que pouco adiantou. Eis sua morada e tacou-lhe dentro do testículo que se assanhou mudou a forma para uma avelã e virou ovário. Ei, como vou sair daqui? -A cada quatro luas você e suas descendentes descerão por dois túneis, as trompas, e irão encontrar com seu par. Olha todos cegos irão aos milhões, adoidados, para ver se pelo menos um te acha. Caso contrário adoção poderá ser uma solução.
O oleiro, que passou a marceneiro que passou a cirurgião voltou ao pescoço e fez o arcabouço da cabeça, parecida com a do dorminhoco, não sem antes pensar no leite e para sua produção pediu a um beija-flor para pegar um pouco de células de uma vaca. Sorte nossa! Se bem que no hemisfério norte... Ele era míope, errou e trouxe material de uma gazela. Chegou a hora dos apetrechos do rosto, por inferência, no captar do olhar de uma chimpanzé fazendo caras e bocas; - deu a Eva lábios suculentos, mais vermelhos, a língua capaz de colear, voltear, tremeluzir, saracotear, enrolar e ser enrolada. Lamber crias, só retórica.
Despachou beija-flores auxiliares para outras missões com exigência de, para cada produto, aprovação da Anvisa, código de barras e nota fiscal. Para o nariz secreção de canídeos, pois ela teria que ter um faro extraordinário para perceber cheiro de cerveja, cigarro, charutos, odores de perfumes de concorrentes em roupas e cabelos e poder aprontar quando seu macho freqüentar outras ocas ou tocas. Da águia veio secreção lacrimal para visão acurada de perceber as futuras sacadas no e do mulherio nas praias, festas e igrejas. Secreção de ouvido de morcego para ter um que possa perceber qualquer sussurro extra em telefonemas, cochichos ao pé do ouvido de amigas, colegas de repartição. Mistura de cera do ouvido das zebras, lobas e hienas o material para esta marca eterna. Andará de orelha aparentemente murcha, mas sempre em pé. Acabou de colocar células de língua de arara e o matraquear automático de Eva, começou mesmo sem ter com quem tricotar. Foi posta a nocaute.
Precisava de controle dentro do coco da cabeça para que pudesse andar rebolando, correr atrás de marido, carregar criança no colo e nele dar de mamar, voar, mergulhar, não se dar com sogras, pilotar fogão, blogar, botar a mão na cintura e rodar a baiana. Uma longa depressão mundial não permitira os upgrades nos já obsoletos chips de Adão que apesar de poucos dias estava bem rodado, mas eles haviam se integrado e transformado em quatro neurônios, percebidos através uma ressonância magnética.
O agora neurocirurgião-lingüísta pensou muito e para não lhe criar um concorrente eterno, o que não deu certo, mandou um e-mail cuja resposta veio com dez vezes a velocidade da luz - a atmosfera era limpíssima e sem tempestades magnéticas. Logo a seguir atravessando a barreira do tempo chegam dois esquilos muito engraçados que vieram do futuro, precisamente de um país que pelo seu desregramento de mercado logo após uma promessa de fim do mundo quebrou literalmente. Eles vieram dos estúdios de Walt Disney, lindos e fofos, travessos, um mais safadinho que o outro, sempre se metendo em encrencas.
Apresento aos leitores os adotados e famosos Tico e Teco.
Adão acorda e se extasia. A melhor obra da natureza estava ali na sua frente. Embevecido, um tanto apatetado, aprofundou se na sua inocência absoluta. Revirou os olhos, babou um pouco, não tirava os olhos dos olhos de Eva. Ela deu o primeiro sorriso do mundo, esticou o braço e pegou sua mão. No chão, vários riscos de cálculos que pareciam uma planta de engenharia. Ele sentiu o calorzinho dela e sorriu. -Vamos brincar de pular amarelinha?
Fitava-os de soslaio um bicho rastejante.

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